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Transporte por aplicativo: amigo ou inimigo da mobilidade?

24 de janeiro de 2019

O ano era 2011. Uma das maiores empresas de transporte por aplicativo do mundo chegava a Nova York. Aos poucos, o serviço de viagens remuneradas em veículos individuais, solicitadas por meio de cadastro prévio em plataforma online, foi crescendo. E cresceu até explodir: o número de veículos deu um vertiginoso salto entre 2015 e 2018, passando de 12,6 mil para 80 mil, de acordo com a New York City Taxi and Limousine Commission.

Foto: Divulgação NTU

Os 130 mil motoristas ativos – incluindo os de táxi e transporte executivo – levaram a um considerável boom nos congestionamentos. Assim, para equilibrar a situação enquanto estuda os impactos no transporte público, a prefeitura decidiu, em agosto, limitar o número de licenças para motoristas de serviços de transporte por aplicativo durante um ano. Em outra medida, estabeleceu um salário mínimo para os motoristas de aplicativo.

Aliviar as avenidas saturadas, frear a queda na demanda do metrô (a cidade norte-americana é uma das poucas no mundo cujo metrô se sustenta apenas com a tarifa) e aumentar a renda dos motoristas são os principais objetivos da prefeitura. Com 8,5 milhões de habitantes, Nova York é o maior mercado dos Estados Unidos para empresas de transporte por aplicativo, e também uma influência para o mundo quando o assunto é legislação.

O presidente da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), Ailton Brasiliense, espera que essa movimentação se espalhe pelo Brasil. “Nova York teve que voltar atrás e regulamentar. Se não houver um controle razoável, cai o número de passageiros do metrô e do ônibus, aumentam os carros nas ruas, a poluição, o trânsito. Transporte é algo que afeta a vida de todos, um indicador importante da qualidade e do desenvolvimento de um lugar. Nenhuma cidade pode se dar ao luxo de não se preocupar com isso”, adverte.

Em palestra sobre as práticas predatórias da Uber, no ano passado, o procurador do Ministério Público do Trabalho (RJ) e professor de Direito do Trabalho da UFRJ, Rodrigo Carelli, criticou não apenas os métodos da companhia diante do mercado e de seus trabalhadores, mas também a omissão do poder público. “Uber não é um aplicativo, é uma empresa. Que se defende dizendo que é uma empresa de tecnologia, e tenta convencer a todos de que os motoristas têm o próprio negócio, quando na verdade são explorados. Não culpo quem usa ou deixa de usar, o consumidor vai escolher o que for mais barato e melhor para ele. A solução deve vir do Estado, que precisa regular. Tudo isso está acontecendo porque o Estado não é forte o suficiente”, disparou.

O fato é que as reações ao surgimento e crescimento das empresas de transporte por aplicativo têm sido diversas. Tanto que para evitar que aplicativos ofereçam ilegalmente transporte coletivo de passageiros, como os novos serviços da Uber (Uber Juntos) e 99 (Pool+), entidades que representam empresas de ônibus notificaram, no início de dezembro, prefeitos e secretários de transportes dos municípios sobre os riscos para as redes de transporte público. As prefeituras de São Paulo (SP), Belo Horizonte (MG), Porto Alegre (RS), Aracaju (SE), Fortaleza (CE), Maceió (AL) e de nove municípios da Região Metropolitana do Rio de Janeiro já foram notificadas para tomar providências no sentido de coibir esse tipo de prática.

No documento enviado às autoridades competentes nos municípios, as entidades advertem que o serviço de transporte ofertado por meio dos aplicativos nessas novas modalidades coletivas é similar ao das operadoras do sistema de transporte público de passageiros. Reforçam que o serviço configura transporte ilegal, visto que o transporte coletivo urbano é regulado, delegado à iniciativa privada por meio de licitação, mediante contratos de concessão ou permissão, conforme legislação federal e local.


Movimento global

O chamado Transporte Sob Demanda surgiu na década de 1980, inicialmente com a ideia de complementar o transporte público. É impossível negar que o serviço começou uma verdadeira revolução nos padrões da mobilidade urbana mundial, especialmente a partir dos anos 2000, quando passou a conquistar mercados bilionários. Mas é aí que começam as diferenças fundamentais entre o transporte individual remunerado e o transporte público coletivo.

O primeiro funciona em modelo peer-to-peer (par a par), uma espécie de economia compartilhada, flexível, de consumo colaborativo – neste caso impulsionado pelo lucro e com operação concentrada em um ou poucos fornecedores. Já o segundo é um serviço público, com regras regidas pelo poder público e compromisso com a modicidade tarifária (preço acessível), universalidade e continuidade da prestação – de forma que todos sejam contemplados, sem interrupções. Já o transporte por aplicativo não carrega a mesma responsabilidade e não atende os mais pobres, que não têm recursos para utilizar Uber e afins.

“Para além disso, existem políticas sociais no transporte coletivo. Gratuidades para estudantes, idosos, isenção total ou parcial para deficientes, entre outras. A Uber não faz esse tipo de coisa, nem vai querer fazer, certo? No transporte público por ônibus, há contratos de concessão com as cidades que não são feitos aleatoriamente, mas por meio de processos de licitação, atendendo a Constituição Federal. Esses instrumentos precisam ser respeitados. A NTU pontua que não é contra o transporte individual por aplicativo, só defende que eles precisam cumprir a leis”, argumenta o coordenador jurídico e parlamentar da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), Ivo Palmeira. “No caso de transporte coletivo, entendo, como advogado, que estamos diante de um transporte ilegal travestido de modernidade, que são os aplicativos”, acrescenta.

Em Nota Técnica sobre os conceitos, impactos e processos de regulamentação do serviço, a NTU traz estudos que indicam três ciclos pelos quais as cidades costumam passar: proibição imediata, regulamentação similar ao táxi e regulamentação específica para o serviço.

Nos Estados Unidos, isso vem ocorrendo em nível estadual – enquanto alguns estados não têm regras, outros definem normas rígidas. É comum a exigência de seguros, antecedentes criminais dos motoristas e a divulgação de dados das empresas para órgãos reguladores e seguradoras.

Na Suécia, o assunto está na fase dos debates, mas já são apontadas preocupações com questões trabalhistas. Em países como Finlândia, Polônia, República Tcheca, Estônia e Lituânia, a operação é proibida. Bulgária, Hungria, Dinamarca e Austrália consideram o serviço ilegal, e a principal alegação é de concorrência desleal com táxis. Entre os que permitem, mas adotam restrições mais severas, estão Alemanha, Portugal, Itália, Hong Kong e França.

Um caso emblemático é Londres, o principal mercado da Uber na Europa. Em setembro de 2017, a capital inglesa suspendeu a licença da empresa devido ao uso de softwares “secretos demais”, que não podem ser verificados por governos, e de problemas no método para denunciar crimes e analisar antecedentes dos motoristas. Em junho deste ano, a justiça londrina liberou a operação após mudanças na política e no pessoal da empresa, mas com uma concessão mais curta – 15 meses, em vez de 5 anos. Além disso, a Uber se comprometeu a reportar à agência regulatória de transportes os incidentes e a passar por auditoria externa e independente a cada seis meses.

Brasil ainda engatinha

Por aqui, os estudos não revelam o real impacto do serviço, principalmente pela falta de acesso aos dados. Mas há pesquisas que apontam para uma migração de usuários do transporte público coletivo para os aplicativos de transporte. Dados da NTU mostram que, de 2014 a 2017, a demanda caiu 25% nas principais capitais, sendo que, em algumas, o transporte por aplicativo foi responsável por até 5% da queda. Pesquisa realizada pelo Ideia Big Data, em novembro de 2017, a pedido dos Institutos Escolhas e Clima e Sociedade, identificou que 81% das 3 mil pessoas entrevistadas nas cinco regiões brasileiras aprovam aplicativos como Uber e Cabify.

Além disso, 32% delas afirmaram usar o serviço duas ou mais vezes por semana. O dado mais alarmante, no entanto, diz respeito ao modal de deslocamento utilizado antes dos aplicativos: 49% abandonaram o transporte público; 37%, o táxi; e 24%, o próprio carro. Mais uma vez, o transporte público perde demanda, enquanto as ruas se enchem de veículos, o tráfego aumenta, a qualidade nos ônibus despenca e a tarifa sobe, num círculo vicioso.

Em 26 de março deste ano foi sancionada a Lei 13.640/2018, que altera a Lei de Mobilidade Urbana (12.587/2012) para regulamentar o transporte privado de passageiros por aplicativos móveis. Basicamente, a legislação federal atribuiu aos municípios e ao Distrito Federal a responsabilidade de regulamentar e fiscalizar a modalidade, mas fixou também algumas diretrizes, dentre elas a cobrança de tributos.

Aos prestadores do serviço, são exigidas a contratação de Seguro APP (Acidentes Pessoais a Passageiros), Seguro Obrigatório de Danos Pessoais causados por Veículos Automotores (DPVAT), e inscrição dos motoristas como contribuintes no INSS. Além disso, o condutor deve ter CNH na categoria B ou superior com a informação de que exerce atividade remunerada e apresentar certidão negativa de antecedentes criminais. O veículo precisa ser licenciado e atender aos requisitos da autoridade de trânsito e respeitar a idade máxima estabelecida. Sem o cumprimento das normas, o serviço é enquadrado como transporte ilegal de passageiros.

Com a lei, a modalidade de transporte por aplicativo passou a integrar a Política Nacional de Mobilidade Urbana. O presidente da ANTP observa a necessidade de enxergar isso como uma oportunidade de integração, sempre com foco na maioria. “Temos de ter projetos de cidades que contemplem o transporte, não só de ônibus, mas de todos os veículos, para que a população se desloque pelo melhor preço, num prazo menor. Os aplicativos são importantes para a sociedade, uma cultura estabelecida. Mas, como está, eles não resolvem o problema, desqualificam o transporte público e aumentam a pressão em cima dos menos favorecidos. É preciso preservar o espaço do transporte público”, destaca Ailton Brasiliense.

Embora tenha sido um passo rumo à organização do transporte por aplicativo dentro da complexa estrutura da mobilidade urbana, a lei veio com alguns equívocos. Primeiro, criou um vácuo, ao substituir o conceito de transporte motorizado privado pelo de transporte remunerado privado individual de passageiros, excluindo o modal do veículo particular sem fins comerciais (o automóvel particular). Depois, estabeleceu que o serviço é “para viagens individualizadas ou compartilhadas”, outra falha, já que não há conceito legal de viagem compartilhada uma vez que que a lei reconhece apenas individual e coletivo.

“O planejamento da mobilidade urbana deve incluir todos os modais. Como o Congresso retira o carro e coloca o Uber no lugar? E a inclusão de viagens compartilhadas abre espaço para interpretações além do texto da lei e incentivam os aplicativos a realizar transporte coletivo de passageiros com tarifa fixa. Na Lei de Mobilidade Urbana existe um dispositivo que estabelece obrigação do poder público de garantir a estabilidade econômica do transporte público”, alerta Ivo Palmeira.

Regulamentação: como fazer?

Se, por um lado, a crise econômica afastou do transporte público os menos favorecidos, por outro, a ascensão dos aplicativos tirou dos ônibus, trens e metrôs aquela parcela da população com condições de arcar com os custos do serviço. Entretanto, embora um Uber saia mais barato que um táxi, ele não consegue superar o transporte público nas viagens individuais, mas pode ser uma ameaça quando começar a realizar transporte coletivo em viagens de curta distância.

Tendo em vista esse cenário, cidades como Brasília (DF), São Paulo (SP), Vitória (ES), Porto Alegre (RS) e Belo Horizonte (MG) foram pioneiras na regulamentação do transporte por aplicativo. Hoje, são cerca de 12 cidades na lista, que tende a aumentar. Entre os pontos em comum estão idade máxima dos veículos (5 a 8 anos para movidos a gasolina ou etanol), exigência de cadastro nas prefeituras e não fixação de tarifas ou limites de frota. As taxas municipais não seguem um padrão e, aos motoristas, há apenas obrigatoriedade da CNH com autorização para atividade remunerada ou cursos de mecânica e ambiental. Apenas São Paulo informou que pode pedir dados da operação, caso precise. Quanto ao limite de passageiros, grande parte impõe sete – São Paulo, mais uma vez, se diferenciou ao exigir quatro.

Segundo o presidente da ANTP, é impossível definir regras gerais para a regulamentação, já que ela depende da realidade de cada município e do número de habitantes. “Não tem receita de bolo. Mas uma coisa todos precisam ter em mente: a priorização do transporte público. O planejamento urbano vem em primeiro lugar e o aplicativo se molda à necessidade da cidade, não o contrário. Se um prefeito acha que não investir em transporte não afeta sua gestão, ele está enganado, pois, com tantos carros, aumentam congestionamentos, acidentes, poluição. Isso afeta tudo, desde a mobilidade até a segurança e a saúde”, aponta Ailton Brasiliense.

O exemplo de Gravataí e novas ideias

Em abril deste ano, Gravataí (RS) aprovou a lei que regulamenta o transporte privado individual remunerado no município. O texto estabeleceu que, nos 12 meses seguintes, veículos com até 10 anos pudessem rodar, desde que tivessem quatro portas e ar-condicionado. Os carros de fora da cidade também podem atuar.

Mas o principal destaque da regulamentação, que tem rendido elogios à prefeitura, é a exigência de que, a partir do cadastramento, as empresas disponibilizem seus dados, entre eles origem e destino das viagens, duração das corridas, identificação dos motoristas, distância percorrida nos trajetos e valores. O credenciamento tem duração de cinco anos e as operadoras estão sujeitas a notificação e multa se descumprirem algum item.

O vice-presidente institucional da Associação dos Transportadores Intermunicipais Metropolitanos de Passageiros (ATM) – que representa as empresas do transporte coletivo entre os municípios da Região Metropolitana de Porto Alegre –, Fabiano Rocha, elogia a nova lei, elaborada após estudos de experiências em outras cidades e audiências públicas. “Atende, em primeiro lugar, à sociedade, pois confere mais transparência, segurança e equilíbrio entre os modais de transporte da cidade”, diz, com uma única ressalva: para ele, apenas veículos com placas do município deveriam rodar em Gravataí.

As empresas ainda não se regularizaram, mas Rocha está otimista, inclusive em relação à atuação paralela dos modais. “O sistema de transporte por aplicativo não é de massa, então não consegue atender às cidades em seus horários de grande concentração de deslocamento. Por outro lado, o transporte coletivo por ônibus não pode atender àqueles locais onde o serviço é mais individual. Eles precisam ser complementares e conviver de forma harmônica, para que possamos enfrentar os grandes problemas de fluxo e, assim, melhorar a vida das pessoas”, defende.

Na outra ponta do país, em Teresina (PI), um Projeto de Lei que regulamenta o serviço de transporte por aplicativo tramita em comissões no Legislativo, ainda sem data para votação em plenário. Uma iniciativa interessante é a do vereador Enzo Samuel (PCdoB), que pretende apresentar uma emenda ao PL para que parte dos recursos arrecadados com a tributação do serviço seja utilizada para subsidiar o transporte público coletivo da capital.

Matéria de capa da Revista NTUrbano Ed. 36, Nov./Dez. 2018.