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[Artigo] Dilema tarifário: a conta do transporte público não fecha no Brasil
23 de janeiro de 2017
Todo ano a história se repete. As empresas de ônibus aguardam pelo reajuste das tarifas, previsto em contrato e necessário para cobrir os custos de operação do sistema – que só crescem. Contudo, diante do menor indício de reajuste, a população protesta, afinal, o orçamento já está muito pesado para mais um acréscimo nas despesas. No meio do conflito, governos lavam as mãos, pois não querem tomar medidas impopulares que representam ameaças ao mandato ou às futuras candidaturas.
Enquanto isso, o sistema de transporte público agoniza e todos saem perdendo: operadoras sobrevivem com dificuldades ou fecham as portas, usuários pagam por um serviço sem a devida qualidade, e o poder público segue arrastando um problema crônico e cada vez mais prejudicial. No Brasil, o transporte coletivo sempre foi financiado pela passagem cobrada diariamente de cidadãos que desejam apenas utilizar o direito constitucional de ir e vir.
Longe do ideal, esse modelo é falho e cai em um ciclo vicioso, no qual o aumento insuficiente da tarifa leva à ineficiência na prestação do serviço, que reduz a demanda, o que, por sua vez, exige novos reajustes. Os números não mentem. Entre 2014 e 2015, houve redução de 3,2 milhões de passageiros por dia no sistema, de acordo com estudos feitos pela Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU).
Para o presidente executivo da NTU, Otávio Cunha, o custeio por meio da tarifa é algo ultrapassado. “Precisamos modificar a política tarifária, se quisermos pensar em melhorias no transporte. Além da pressão para que o valor não aumente, há também uma incompreensão, por parte da sociedade, de que a tarifa é compatível com a qualidade oferecida. Por isso, as pessoas ficam sempre com aquela sensação de que todo ano a tarifa aumenta, e o transporte nunca melhora, continua o mesmo”, afirma.
Nesta equação, um dos grandes problemas está na falta de informação a respeito das dificuldades enfrentadas pelas empresas de ônibus. Para começar, os altos custos da operação, que só crescem a cada ano. A mão de obra, com todas as cargas tributárias, representa cerca de 50% do orçamento. Além disso, o preço do óleo diesel, combustível usado pelos ônibus, não para de subir: somente entre 2010 e 2015, o salto foi de 52,7%. Isso sem falar que os preços do diesel nos últimos 15 anos subiram 57% a mais que o da gasolina.
A crise econômica enfrentada pelo país nos últimos anos também não ajudou. Além do aumento assustador do diesel, o arrocho financeiro tem provocado taxas elevadas de desemprego, que têm duas consequências diretas no transporte público. A primeira é a redução na demanda para ir ao trabalho. Já a segunda diz respeito à parcela da população que passou a se locomover menos, a fim de conter gastos.
Cide municipal: esperança de mais recursos
Embora o cenário, a princípio, não seja nem um pouco animador, há uma proposta que tem dado esperanças ao setor. É a criação da Cide municipal, uma contribuição calculada sobre o álcool, a gasolina e o gás veicular em cada município. A ideia da proposta de Emenda à Constituição, sugerida pela Frente Nacional dos Prefeitos (FNP), é que os usuários do transporte particular passem a financiar o transporte público.
Se aprovada, a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico em nível municipal sua arrecadação será destinada ao custeio do sistema de transporte público. O recurso, carimbado constitucionalmente, poderá ser fiscalizado por um conselho formado por usuários do setor, evitando o desvio.
Aí você deve estar se perguntando: mais um imposto, em pleno período de crise? Ou, ainda, se é realmente justo cobrar de motoristas de automóveis particulares uma conta que é do transporte público, que eles sequer utilizam. Ocorre que os carros ocupam 75% das vias enquanto transportam somente 20% dos usuários. Por outro lado, os ônibus ocupam 20% do espaço urbano para transportar 70% da população. A conta não fecha, certo?
“Essa é uma forma de dividir as responsabilidades pelos custos do transporte público com quem opta por utilizar o transporte individual, que também é responsável por elevar a tarifa dos ônibus aumentando os congestionamentos e acidentes, favorecendo a ineficiência do sistema”, ressalta o vice-presidente de Mobilidade Urbana da FNP e prefeito de Sorocaba (SP), Antonio Pannunzio.
Mais bônus do que ônus
As vantagens da aprovação da Cide municipal não param por aí. Entre os benefícios apontados estão a redução da tarifa do transporte público. De acordo com estudo feito pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), a taxação de R$ 0,10 sobre o litro dos combustíveis permitiria uma redução de até 30% no preço da tarifa do transporte público. Na prática, seriam R$ 1,20 a menos nos bilhetes e uma economia de cerca de R$ 11 bilhões por ano.
Parte dos recursos poderia ser utilizada para obter um transporte coletivo melhor e mais eficiente. Assim, a soma entre tarifa mais barata e serviço de qualidade atrairia novos usuários. Incluindo aquela demanda perdida pela má fase da economia. Aliás, vale lembrar que a mesma FGV calculou que a medida seria positiva para 78% da população, formada por aqueles com salários entre um e 12 salários mínimos. Tendo em vista que as classes mais baixas são as mais prejudicadas pelas falhas do transporte público, haveria mais equilíbrio social.
“Nós estamos defendendo fortemente o fato de que o barateamento das passagens do transporte público inibiria o uso do transporte particular. Como consequência, haveria impactos positivos no meio ambiente e na saúde das pessoas, com um trânsito mais leve e redução do tempo gasto nos trajetos. Beneficia tanto usuários do transporte público quanto os que utilizam o transporte particular”, afirma Pannunzio.
Há uma preocupação dos legisladores de que o aumento dos preços dos combustíveis poderia estimular a inflação (aumento dos preços e redução do poder de compra). Mas seria justamente o contrário: ocorreria deflação, uma diminuição nos preços e valorização da moeda. Segundo cálculos da NTU, enquanto o aumento de 5% na gasolina gera inflação de 0,32%, a queda de 30% na tarifa produz deflação de 0,7%.
Assim, o balanço final seria uma deflação de 0,38% – resultado da subtração entre 0,7% e 0,32%.
O ideal, na avaliação do presidente executivo da NTU, é que a Cide municipal subsidie 50% do custo do transporte público. A outra metade seria paga pelo usuário. “A esperança é diminuir o custo da passagem e, com isso, trazer uma nova demanda para o transporte. E se o serviço melhorar a qualidade, o motorista de carro particular também migrará. O menor abastecimento de automóveis nos postos reduziria a arrecadação da Cide, mas o valor seria recompensado com a demanda maior”, explica Otávio Cunha.
Um problema de todos nós
Recentemente, uma declaração feita pelo então prefeito de São Paulo acendeu a luz vermelha entre os defensores do transporte público. João Doria disse que iria congelar a tarifa de ônibus em 2017. A ideia parece promissora, mas o que a maior parte das pessoas desconhece é que o município já pratica uma subvenção ao transporte de 30% dos custos do setor, com repasse atual na ordem de R$ 2 bilhões por ano.
Sendo assim, o receio do setor é que outros municípios comecem a seguir o exemplo de Doria e, na intenção de evitar manifestações populares contrárias ao aumento de tarifas, provoquem um colapso no sistema, que ficará sem recursos para se sustentar. “O passageiro, em São Paulo, paga R$ 3,80, só que a tarifa real custa R$ 5,22. A diferença é paga pela prefeitura. Mas, e nos locais onde o sistema é 100% financiado pelas passagens, como fica a situação? A prefeitura de Mauá (SP), por exemplo, já sinalizou que tomará a mesma medida. Se essa moda pega, o transporte público paralisa. Não conseguirá arcar, por exemplo, com o aumento de custos com pessoal”, preocupa-se o presidente executivo da NTU.
Essa queda de braço entre governos e empresas de ônibus é mais um motivo para que a solução a respeito da tarifa seja definitiva. Em algumas cidades, assim como São Paulo, há algumas subvenções que ajudam a custear o sistema. Brasília (DF), por exemplo, banca integralmente as gratuidades dos idosos e estudantes. Alguns estados, por sua vez, investem em desonerações como redução de ICMS sobre o diesel, e até mesmo isenções de IPVA.
Mas esse está longe de ser o cenário ideal. Além da Cide municipal, há outras possibilidades de financiamento defendidas por especialistas. O vice-presidente de Mobilidade Urbana da FNP, Antonio Pannunzio, aponta, além da Cide municipal, outros caminhos viáveis: “Para um problema tão complexo como este, é evidente que não correríamos o risco de apontar uma solução mágica, simplificadora.
Algumas opções são a revisão da legislação do vale-transporte, a desoneração tributária do setor, e a revisão do financiamento das gratuidades, que não devem ser custeadas apenas por quem utiliza o transporte público”.
A aprovação da PEC 90/2011, que inclui o transporte público entre os direitos sociais, reforça essa necessidade, na visão de Otávio Cunha. “Temos aí a possibilidade de criar um fundo de financiamento do transporte público, assim como existem os fundos para saúde e educação, por exemplo. Existem várias fontes para melhorar os serviços essenciais à população. Precisamos busca-las e isso é responsabilidade de toda a sociedade”, destaca o presidente executivo da NTU.
Outras fontes de financiamento
Para o pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) Carlos Henrique Ribeiro, o dinheiro que movimenta o setor não deve ter 100% de sua origem na tarifa, nem nos recursos públicos, que também ficam escassos diante de crises fiscais ou má gestão.
Uma boa alternativa, segundo ele, é, realmente, dividir a conta com usuários do transporte individual. “Daí é possível vislumbrar várias fontes. A cobrança em cima de combustíveis é uma delas, mas não é a única. O IPVA e o IPI são alguns dos impostos que poderiam ser usados. Além disso, há a possibilidade de criação de pedágios urbanos e cobrança de estacionamentos públicos”, exemplifica.
Atualmente, as contas do transporte público recaem, essencialmente, sobre as classes sociais menos favorecidas. Para a população mais rica, esse impacto é pequeno, e só vem diminuindo ao longo do tempo. Como o setor é bancado pela tarifa, os ricos não contribuem como poderiam. Dentro desse contexto, Carlos Henrique sugere, ainda, acordos com o setor imobiliário e proprietários de terras valorizadas devido à construção de estruturas de transporte próximas, como estações de BRT ou de metrô. Contribuições do setor produtivo também são possibilidades.
Com a queda da atividade econômica e mesmo a perda de espaço do transporte público para o individual, essa busca por novas fontes de financiamento tornou-se ainda mais urgente. E não apenas para custeio e manutenção, mas também para infraestrutura. Nesse caso, a principal solução pode estar nas parcerias público-privadas, em que governos (federal, estadual ou municipal) firmam acordos com empresas privadas.
“No último levantamento que fizemos, calculamos que, para alcançar um nível razoável de infraestrutura, de BRTs e linhas metroviárias nas megalópoles brasileiras, seriam necessários mais de R$ 100 bilhões. Isso para alcançar o padrão de localidades como Cidade do México e Santiago, no Chile. Isso não se faz em uma gestão de quatro anos, mas por meio de uma política de estado, de investimentos perenes no transporte público do país”, argumenta Carlos Henrique.
Em relação à busca por medidas que levem à redução da tarifa, o pesquisador reconhece o aspecto positivo. No entanto, alerta: é preciso garantir a sustentabilidade econômica do sistema. “Reduzir o valor da passagem é bom, mas, para diminuir ou congelar, você deve ter uma fonte de recursos que compense isso.
O que não dá é para fazer algo de forma ilusória, só na canetada, do tipo ‘não vou aumentar, mas esqueço que os custos estão aumentando, tem diesel, reajuste de salários, manutenção’. É fundamental dar sustentabilidade ao sistema. Para isso, só resta discutir novas formas de financiamento. Enquanto isso não acontecer, o setor de transporte público vai sofrer”, avalia.
Matéria publicada na revista NTU Urbano edição novembro/dezembro 2016.